sexta-feira, 7 de maio de 2010

"Cordialidade"


Luís Fernando Veríssimo*





A tese da cordialidade inata do povo brasileiro, exposta pelo historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda no seu magnífico "Raízes do Brasil", foi mal entendida e criticada. A ponto de o seu autor precisar explicar que não chamara o brasileiro de essencialmente bom ao destacar traços da sua personalidade, como a hospitalidade e a generosidade, que impressionavam os estrangeiros.
Os críticos ou tinham escolhido sinônimos para "cordialidade", como fraqueza e irresolução, que não constavam da intenção da tese ou simplesmente chamavam a tese de absurda, dadas as evidências em contrário na nossa história e nas nossas relações sociais. Ninguém melhor do que Sérgio Buarque de Holanda sabia da truculência e da crueldade presentes nas nossas vidas desde as primeiras caravelas, sua tese estava longe de ser um desagravo do brasileiro, mas o mal-entendido persistiu. E com o tempo a "cordialidade" apontada pelo historiador ganhou significados novos e menos nobres. Hoje, é sinônimo do deixapra-lá-ismo que domina a moral nacional, e que não deixa de ser uma forma de generosidade com o próximo.
Não somos tanto cordiais como desleixadamente coniventes.
Mas o sentido original da tese do Sérgio Buarque de Holanda foi recuperado, há dias, pelo ministro do Supremo Eros Grau, ao atribuir as anistias dadas, tanto a recente quanto as outras no nosso passado, à cordialidade inata do povo brasileiro. Está no seu voto de relator, um voto perfeitamente respeitável, ainda mais que Grau foi perseguido pela ditadura e tinha motivos pessoais para votar contra manter o perdão sem exceção.
Mas invocar a velha tese da cordialidade para justificar o perdão foi estranho.
Poucas vezes na nossa História a cordialidade brasileira foi tão dolorosamente desmentida como nos porões da última ditadura, em que a tortura, expressamente ou implicitamente autorizada pelo braço armado do Estado, foi prática sistemática. Um voto a favor da velha e simpática concepção de cordialidade brasileira deveria ser um voto contra a impunidade dos que a desmentiram oficialmente, e institucionalizaram seus crimes, tanto que hoje rejeitam sua averiguação sob pretexto de proteger a instituição. "Cordialidade", no caso, sendo sinônimo de convívio civilizado, em qualquer circunstância.
Grau e os outros que votaram contra a revisão da anistia votaram não pela cordialidade mas pela sua deturpação.
Votaram para deixar pra lá, e pela conivência.


*Luís Fernando Veríssimo é jornalista
Ârtigo publicado no jornal O Globo, 6 de maio de 2010

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